Quando me esquecer que existo para ser o ar que tu respiras, é porque me estarão a enterrar na melodia do canário amarelo...
Todas as noites ele tem o mesmo ritual: alcança uma caneta, arranca uma folha de um caderno velho e tenta desenhar-lhe a face, o rosto imaculado. Lembra-se dele perfeitamente, deitado sobre a almofada quente; os olhos cerrados iluminavam sonhos nunca antes vividos nem imaginados, a boca semi aberta proferia monossílabos a um ritmo acelerado.
E ele lembra-se do seu cheiro a dormir, da sua respiração ofegante quando sonhava, lembra-se do que murmurava a meio da noite. Lembra-se do seu rosto que tenta desenhar agora, tantos anos depois de se deixarem.
Não era suposto que ele tivesse esquecido o seu passado? e será que se esquece de verdade? ou apenas se ultrapassa?
Isto foi o que ele fez. Ultrapassou. Ela, contudo, permaneceu sempre lá, alimentando-se da migalha distraída que ele ia dando. E agora que ela deixou de respirar perto dele, e longe dele também, ele tenta desenhá-la para a eternizar.
Sem efeito.
A sua beleza era demais para se transpor para uma folha. A beleza do seu amor por ele, que ele nunca manteve.
Depois de tudo, acompanhado pela melodia do canário do vizinho, ele tenta enterrar o desenho para esquecer que precisa de a respirar.
3 comentários:
Só percebemos a falta que uma pessoa faz quando a perdemos
* * *
Gostei da mudança de "visual"...
Este seu texto deixou-me uns minutos em silêncio. Coloquei-me no lugar dele, peguei numa caneta e rasguei uma folha de um caderno. Respirei fundo quando percebi que ainda guardo na minha memória cada traço da expressão dela que eu mais gostava.
Obrigado por este texto...
Enviar um comentário