quarta-feira, novembro 23, 2005

Toma, é para ti...

Nos braços carrega um enorme e estrondoso ramo de flores: vinte e cinco rosas vermelhas, embrulhadas em verdura verde-clara e verde-seca, com ramos castanhos e amarelados, tal estapafúrdia combinação de plantas. Estas representam, de certo, vinte e cinco anos que, carinhosamente, ele transporta no colo; uma vida que construímos em conjunto, três filhos e um neto, sabores e dissabores de um casamento já eterno. Corremos o risco de envelhecermos juntos, na mesma casa e na mesma cama, sabendo de cor o cheiro do outro.

Ai, que ele caminha tão lentamente, contando os passos até mim: não quer nem que sejam menos nem que sejam mais que vinte e cinco! Tanto perfeccionismo, tanta minuciosidade...torna-se não só exagerado como também desegradável.

O seu perfume espalha-se pela sala, o mesmo perfume, vinte e cinco anos deste perfume...e não só: do mesmo estilo, do mesmo olhar, do mesmo gesto, do mesmo carinho...vinte e cinco rosas, vinte e cinco passos, vinte e cinco anos! por vezes acredito que este número está enfeitiçado, de alguma forma amaldiçoado! Eu, que tinha um mundo a descobrir; este, que prometia ser meu! E entreguei vinte e cinco anos da minha vida à comodidade e segurança de uma relação sólida!

Rebeldia, onde estiveste no momento de dizer "não"?

Chegou perto de mim, depois de um caminhar vagaroso. Beijou-me levemente os lábios, estendeu os braços e disse, simplesmente: "toma, é para ti...". e deu-me aquele ramo pardo de flores; discretamente, levo a mão à mala, tiro um molho de papéis e, desenhando o fim, retribuo: "toma, é para ti...".

E ele, sem regatear, assina, ao fim de vinte e cinco anos, o papel do divórcio.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Trocas

Senta-se na mesa do canto e observo-a acima do jornal. De saia rodada, pernas esguias e corpo magro, cirandou pelo chão até chegar àquela mesa, redonda, fria e só.

Aconchegando-se na beira da cadeira de metal, cruzando as pernas, arqueando o peito, pede um café em tom fino e coloca os seus óculos de traço elegante. Tira o livro, tira a caneta, tira o bloco de notas e ordena tudo, obsessivamente. Espera o café, aquele café de sabor amargo e queimado mas suficientemente doce para lhe aquecer a alma.

Põe a caneta na boca, olha para a rua, roí as unhas, leva as mãos ao cabelo, penteando-se como dançarina de Valsa e, voltando-se para mim, pela primeira vez, cordialmente, trocamos os olhares. Ela sabe que a descubro entre linhas e escreve sobre isso, já findando o seu café. E eu sei que ela rabisca o quanto adora que eu a espreite, que a vigie tal guarda-nocturno.

Reconheço-a da televisão, a sua voz ao pedir o café não me era estranha, ouvira-a algures nas frequências da rádio. Sei que ela é conhecida e a fama atrai-me E ela sabe que eu sou da plebe, que no anonimato me mantenho, mero desconhecido das revistas e jornais. E isso, sim, isso também a atrai.

Porque ela deseja-me inteiramente e, eu, desejo-a verdadeiramente. Ai, se trocássemos de vidas, aprenderia a cruzar as pernas daquela forma, a pedir o café naquela voz, a roer a caneta sensualmente, perdendo o olhar pela estrada rural e, mais que tudo, aprenderia a escrever sobre alguém que me olha. E ela, revelar-se-ia num cigarro mal aceso e num jornal desportivo, nas calças largas e foleiras, no cabelo grisalho e despenteado de alguém que usa um palavreado inútil e brejeiro. Eu, homem das cavernas e ela mulher de passerelle.

Porque não fomos feitos um para o outro, mas para nos trocarmos um pelo outro.