Quando me esquecer que existo para ser o ar que tu respiras, é porque me estarão a enterrar na melodia do canário amarelo...
Todas as noites ele tem o mesmo ritual: alcança uma caneta, arranca uma folha de um caderno velho e tenta desenhar-lhe a face, o rosto imaculado. Lembra-se dele perfeitamente, deitado sobre a almofada quente; os olhos cerrados iluminavam sonhos nunca antes vividos nem imaginados, a boca semi aberta proferia monossílabos a um ritmo acelerado.
E ele lembra-se do seu cheiro a dormir, da sua respiração ofegante quando sonhava, lembra-se do que murmurava a meio da noite. Lembra-se do seu rosto que tenta desenhar agora, tantos anos depois de se deixarem.
Não era suposto que ele tivesse esquecido o seu passado? e será que se esquece de verdade? ou apenas se ultrapassa?
Isto foi o que ele fez. Ultrapassou. Ela, contudo, permaneceu sempre lá, alimentando-se da migalha distraída que ele ia dando. E agora que ela deixou de respirar perto dele, e longe dele também, ele tenta desenhá-la para a eternizar.
Sem efeito.
A sua beleza era demais para se transpor para uma folha. A beleza do seu amor por ele, que ele nunca manteve.
Depois de tudo, acompanhado pela melodia do canário do vizinho, ele tenta enterrar o desenho para esquecer que precisa de a respirar.