sábado, maio 19, 2007

Inverso

Todos os dias, quando acorda, abre a persiana numa ânsia de morte para ver o sol. Para, no fundo, em segredo, saber que ainda vive.

Todos os dias, depois de abrir a persiana e espreitar o dia, ela avança em direcção à cama. E deita-se. Deixa o corpo respirar as últimas gotas de descanso. Ela sabe que ele ainda permanece ali, naquela cama. Onde tantas e tão poucas vezes uniram almas. Onde ela perdeu a dela nele.

Todos os dias, depois de respirar o sol e a cama, foge para a sala e prepara um pequeno-almoço demorado para ningúem; depois, deixa esse manjar ficar exposto o resto do dia, talvez na esperança que ele apareça e tenha fome de nada.

Todos os dias, depois de receber o sol na pele, de absorver os lençóis húmidos da noite, de encomendar um manjar matinal, ela veste-se. E veste-se de negro; a última cor que ele lhe viu. A cor da morte. Porque no dia em que ele partiu sem deixar rasto, ela morreu.

Agora ela entende. Não foi ele que a deixou, foi ela que partiu. E quando foca o olhar, ele está sentado na mesa, a ler o jornal, com um ar envelhecido, comendo uma torrada. O seu pequeno almoço não existe, as persianas estão para baixo, a cama já nem sequer tem lençóis.

Afinal, foi ela que desistiu; e, assim, ele deixou de existir.

6 comentários:

Anónimo disse...

Encontrei o teu blog por acaso, quando procurava um site para ver e gostei... Não sei se o que escreves é verdade, mas de facto o que escreves é bom, no entanto triste... Continua assim...

Alçácia Morena disse...

gostei.
identifiquei-me.
nao sei se é ficção o que escreves, mas na minha 'vida real' fui abandonada. e para ele sei que estou morta.
é triste. alguém que nos completa a nós, nao ser completada por nós.
gostaria de pensar que fui eu que o abandonei, talvez sim.
talvez o sabotei.
(gostei muito da tua escrita, a blogosfera afinal ainda tem coisas boas)

Lord of Erewhon disse...

Faz sentido...

Anónimo disse...

ahah, tavas a ver se nos enganavas, nós a pensar q ele tinha morrido, e afinal quem tinha ido com os porcos era ela.. :P
kidding, tá mt giro ;)
catarina

M disse...

deixo-me levar. inevitável

s. disse...

por vezes precisamos que sejam os outros a nos lembrar que estamos vivos. mas não devia ser assim.